Algumas considerações sobre o artigo "Parada gay, cabra e espinafre", de J.R. Guzzo, publicado em "Veja" desta semana:
- De fato, como o referido artigo menciona, na "comunidade gay" há milhares de interesses diversos. Assim como existem milhares de interesses diversos dentro de partidos políticos, associações de classe, sindicatos - inclusive o dos jornalistas -, governos, entidades etc. Contudo, quando lutam por seus interesses básicos, todos esses grupos se unem em aspectos comuns de suas classes e suas lutas. Usando como exemplos grupos associados por raça e gênero, a mobilização dos negros permitiu a aprovação de leis contra o racismo, e a mobilização das mulheres permitiu a aprovação de leis contra o abuso e as agressões físicas. Portanto, diferente do que o texto menciona, existe, sim, um "movimento gay", que luta por direitos básicos do grupo LGBT - que, como mostra a própria sigla, é diverso, mas tem objetivos básicos comuns. Difícil entender a diversidade dentro da unidade?
- De fato, há milhares de assassinatos no Brasil todos os anos, por diversos motivos. Entretanto, não me parece sensato igualar o assassinato de alguém porque "é homossexual" com o assassinato de alguém por algum motivo capital. Os fatores motivacionais são diferentes: "ser" e "ter". Fosse assim, não seria necessário distinguir o que a Ku Klux Klan fazia com os negros na primeira metade do século XX nos EUA. Afinal, eram apenas "cidadãos 'americanos' assassinados como tantos outros". Difícil entender a história?
- De fato, há exageros no discurso do grupo LGBT, assim como houve - e talvez ainda haja - nos discursos dos grupos ditos "minoritários" - negros, mulheres, imigrantes, judeus, muçulmanos etc.. Nem tudo de fato é homofobia, como nem tudo de fato é racismo. Mas quem sofre a dor é que sabe o que lhe dói. O agressor dificilmente tem a noção da dor que provocou. Já fiz vários comentários e piadas nos meus 40 anos que nunca pensei que teriam magoado - mas magoaram. Assim como tenho ouvido comentários e piadas de pessoas que certamente não queriam me agredir - mas agrediram. Por isso, tipificar o que é ou não homofobia facilitaria, inclusive, a vida de quem "não quer agredir, mas agride". Difícil entender a dor?
- De fato, ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Eu, por exemplo, não gostei do artigo do sr. J.R. Guzzo - e pelo seu teor, talvez não gostaria de conhecer o sr. J.R. Guzzo pessoalmente ou sequer trocar palavras além do que a boa educação exige. E certamente algumas pessoas que vão ler este texto não vão gostar do que estão lendo. Também não gosto de muitas pessoas por seu caráter, suas posturas diante dos outros, por suas ações. Mas NUNCA deixo de gostar de alguém porque é "negro", é "mulher", é "judeu", é "muçulmano", é "heterossexual". Portanto, não é possível admitir que alguém não goste de outra simplesmente porque é "homossexual". Ah, e de fato ninguém é obrigado a gostar de espinafre, como dito no texto, "assim como ninguém é obrigado a gostar de homossexuais", como o artigo compara. Mas, para não gostar de espinafre, em tese você deve experimentá-lo. Não me parece que é o mesmo fator motivacional que faz com que alguém diga que "não gosta de homossexuais". Difícil entender a diferença entre vegetais e gente?
- De fato, há limitações para doações de sangue, como o artigo cita. Pessoas acima de determinada idade, que tiveram determinadas doenças etc.. Entretanto, a inclusão dos homossexuais nessa lista diz respeito a uma única palavra: AIDS. Afinal, ela surgiu nos anos 80 e logo foi chamada "peste gay". Até que a doença descobriu milhões de "heterossexuais" convictos que tinham vida dupla. E a "peste gay" virou "mal da humanidade" em geral há bastante tempo. Portanto, não se justifica impedir homossexuais de serem doadores de sangue, desde que seu sangue seja testado contra todas as doenças que podem causar mal aos receptores desse sangue, como se faz com "heterossexuais". Difícil entender a evolução histórica?
- De fato, vários homossexuais foram jogados à fogueira na Europa do feudalismo e do Renascimento. Entretanto, uma rápida leitura de "História da Sexualidade volume 1", de Michel Foucault, mostra claramente o que ocorria naquela época e o que passou a ocorrer a partir do fim do século XIX. Naquela época, cometer atos sodomitas e adultério equivaliam ao mesmo crime. Ambos pecavam contra os direitos civil e canônico da época. A partir do século XIX, porém, a homossexualidade entra em processo de "biologização" e "psiquialização". Como diz Foucault, "os homossexuais passam a ser uma espécie", passíveis de tratamento, de criminalização. Essas barbaridades, segundo o artigo do sr. J.R. Guzzo, foram eliminadas "pelo avanço natural das sociedades no caminho da liberdade" - uma visão etnocentrista, eurocêntrica e naturalizadora do autor em relação às sociedades, como se elas vivessem uma "evolução constante" a caminho da "civilização europeia", visão esta compatível com os etnologistas e antropólogos do século XIX e que já foi abolida há tempos entre os etnógrafos e antropólogos dos séculos XX e XXI, justamente por sua concepção preconceituosa, subjetiva e emoldurada por discursos de poder. Ao contrário do que faz crer o artigo do sr. J.R. Guzzo, essas barbaridades foram, sim, eliminadas - nem todas, diga-se de passagem - com a mobilização dos homossexuais. Lembremos a revolta de homossexuais contra a ação repressiva da polícia no bar Stonewall Inn, em Nova York, em 28 de junho de 1969, ou seja, há menos de 50 anos, e em plena era do limiar da contracultura, pós Primavera de 1968, da cultura hippie, do flower power. Difícil associar o nome à pessoa?
- De fato, um homem não pode se casar com uma cabra, ainda que possa ter uma relação estável com ela, como o referido artigo menciona. Por isso, justifica o autor, um homem não pode se casar com outro homem, ou uma mulher com outra mulher, porque o casamento, "por lei, é a união entre um homem e uma mulher. (...) Pessoas do mesmo sexo (...) podem apresentar-se na sociedade como casados, celebrar bodas em público e manter uma vida matrimonial. Mas a sua ligação não é um casamento - não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco". Usando a premissa do sr. J.R. Guzzo, pode-se concluir que um homem e uma mulher que não geram filhos não podem ser considerados casados - ainda que eles adotem um filho, pois, afinal, não o "geraram". E se não têm filhos, também não criam laços de parentesco. E, portanto, também não são uma família. Ou seja, na visão do autor, um homem com um homem, e uma mulher com uma mulher, ainda que adotem e criem filhos juntos, registre-os em seus nomes, vivam na mesma casa, unam suas rendas, adquiram bens conjuntos e, caso a relação acabe, se separem, não têm direito a um casamento legal, somente a uma "união estável", que não dá os mesmos direitos que o casamento legal. Difícil entender que homossexuais pagam os mesmos impostos que os heterossexuais e, portanto, o Estado tem o dever de lhe garantir os mesmos direitos?
- Por fim, retorno ao exemplo da cabra. De fato, um homem não pode se casar com uma cabra, ainda que possa ter uma relação estável com ela. E pelo teor do artigo publicado em "Veja", é possível confirmar a premissa da relação estável entre um homem e uma cabra. Provavelmente essa relação estável rendeu como fruto o próprio articulista, que demonstra total ignorância sobre um tema o qual não domina, além de mostrar seu desconhecimento sobre história, filosofia, antropologia, direito civil, direito penal e direitos humanos. Entretanto, o referido articulista é, como eu, jornalista, e as boas regras do jornalismo ditam que devemos tratar apenas do que sabemos. Para tratar com tanta propriedade da relação estável entre homem e cabra, o sr. J.R. Guzzo provavelmente entende do tema. Sua mãe deve estar orgulhosa.